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Foto do escritorJulia Roscoe

Imortalidade é uma mer$%

A vida é imprevisível. A única coisa da qual se pode ter certeza é a morte.

Pois é, eu também costumava pensar isso. Mas já se passaram quase duzentos anos e ainda estou por aqui.

Depois de cair de um cavalo e quebrar meu pescoço, apenas para voltar a ficar de pé, colocar minha cabeça no lugar e ter que perseguir o filho-da-p@#% do cavalo, percebi que a morte não fazia parte do jogo.

Legal, hein?

Bem, nem tanto. A imortalidade pode ser muito solitária.

Para começar, comecei esta vida sozinho. Um condutor de trem me encontrou recém-nascido em um banco na última estação. Não havia como saber quem havia me deixado lá, afinal os trens são conhecidos por conhecerem gente nova a cada dia e verem rostos antigos às centenas. Acredite em mim, sei do que estou falando. Há cerca de 75 anos, tentei encontrar minha mãe: rastreei todas as pessoas que eu sabia que haviam tomado aquele trem naquele dia específico. Mais de uma década depois, a busca não me levou a lugar nenhum.

Mas eu não cresci exatamente sem uma família.

O maquinista tinha uma irmã que estava tentando engravidar e estava mais do que disposta a me aceitar como filho. Ela fez o possível para que eu me sentisse em casa, enquanto, da minha parte, fiz o que pude para me comportar.

Não foi fácil. Na escola, os professores ficavam bravos comigo por dizer coisas como: “a morte não é o fim” e “a igreja está errada, o inferno não é para pecadores”. Meus colegas riam no início, pensando que eu estava sendo engraçado, o palhaço da turma. Eu não estava. De alguma forma, essas verdades me ocorriam e eram tão fáceis de se perceber quanto se vê o azul do céu.

Ninguém realmente me entendia. Inferno, eu mesmo não me entendia.

Obviamente, as coisas ficaram mais estranhas depois daquela droga com o cavalo. Felizmente, ninguém estava por perto para ver.

A imortalidade é uma mer$% solitária. Anos depois de levar minha mãe para todos os devidos propósitos, ela levaria a única pessoa com quem eu realmente me conectei.

– Prometa que não vai se trancar na sua concha – a voz da velha é rouca. Ela pigarreira e insiste mais uma vez: – Prometa-me, Edgar.

– Não posso fazer isso, Celine. Não sem você.

Caramba. Não posso deixar que ela me veja chorando. Não por causa dessa besteira de homem não chorar, mas porque eu não quero tornar isso mais difícil para ela.

Celine tem lidado com todas as minhas porcarias por mais de cinquenta anos. Ela é a única que conhece meu segredo. E eu sou a razão pela qual ela não teve uma vida normal. Afinal, nunca poderíamos ficar muito tempo no mesmo lugar ou as pessoas começariam a se perguntar por que aquele jovem com o nome de um velho não está envelhecendo. Logo, eu fui de marido de Celine para amigo e, finalmente, sobrinho.

Eu não podia dar a ela nenhum filho sob o risco deles acabarem como eu. Não fizemos muitos amigos. Bem, Celine sim, ela é gentil e compassiva dessa forma, mas os relacionamentos não duraram, apenas o suficiente até que tivéssemos que nos mudar novamente.

– Eu conheço esse olhar – ela aperta minha mão, repreendendo e confortando-me ao mesmo tempo. – Lembre-se, você só foi feliz quando se deixou ser.

– Você tem razão. Minha vida não começou até que você apareceu.

Nós dois paramos para olhar para trás para o momento em que nos conhecemos. Foi na faculdade: eu tinha começado a levar os estudos a sério e estava fazendo meu segundo, não, terceiro doutorado. Celine era uma caloura, já determinada o suficiente para saber o que queria e correr atrás.

Eu fui o bastardo sortudo.

– Eu não conseguia entender como alguém podia ser tão maduro e infantil ao mesmo tempo – lembra ela, provando que estamos pensando a mesma coisa. – Tudo fez sentido quando você me contou o seu segredo – ela ri, mas sua risada logo se transforma em um ataque de tosse.

Pela centésima vez, olho ao redor, em busca de algo que possa ajudá-la. Não há nada, nada que eu possa fazer.

– Lembra-se daqueles poucos anos no Colorado? – Ela abre um sorriso quando termina de tossir.

– Você amava a vista da montanha. E caminhadas. A ideia de fazer caminhadas, pelo menos.

Nós dois sorrimos.

A médica entra. Ela é jovem, muito jovem, mas todos parecem assim para mim. Verificando o histórico de Celine, em seguida, fazendo um exame rápido, a expressão da médica não é promissora.

Ela esconde bem, no entanto.

– Seu sobrinho é um bom homem, Celine. É raro ver rapazes como ele cuidando da família – ela fala alto, garantindo que a idosa a ouça.

Celine odeia quando as pessoas fazem isso. Sua audição está em perfeitas condições. É tudo o mais que não está.

Mesmo em seu leito de morte, ela é gentil e sorri para a doutora, conversando um pouco.

Por outro lado, eu quero mandar a médica embora e passar os últimos momentos a sós com minha esposa.

Celine percebe isso e finge adormecer no meio de uma frase. Ela pisca para mim assim que a doutora sai da sala.

– Vou sentir falta disso – digo de repente. “Isso” sendo todas as coisas relacionadas a ela: seu sorriso, seu humor, seu cheiro, até mesmo suas reclamações.

O que foi que eu disse? A imortalidade é uma mer$% solitária.

– Edgar, me escute – ela pede e eu posso ouvir pelo seu tom que chegou a hora. – Eu vou esperar por você. Quando puder, venha para mim. Eu sei que você vai dar um jeito.

Não é hora de discutir. Antes de Celine, tentei me mandar desta vida; ela não vale a pena sozinho e eu estive sozinho por mais de uma centena de anos. Fogo, gelo, pólvora, machado, veneno, você escolhe e eu sobrevivi. Sem um arranhão.

– Bem, suponho que se algo pode me matar, é você – tento fazer uma piada. Momento ruim.

Ela não se importa. Seu sorriso se alarga e continua assim. Uma curva em seu rosto, diferente da linha reta do monitor.

Eu choro como um bebê.

Minha tristeza se transforma em raiva e grito com as enfermeiras que vêm buscá-la. Elas finalmente me deixam em paz. Então grito para o céu, para o grande além que eu tinha certeza que existia quando era menino.

– Leve-me, morte. Leve-me em seu lugar. Ela pode ter esse presente estúpido. Leve-me!

Não sei quanto tempo grito sozinho, horas (talvez) depois, uma das enfermeiras volta.

– Você está pronto, Edgar?

Sua voz ecoa na sala, o que parece estranho, então eu me viro para encará-la.

Como a droga de um desenho animado dos anos 90, ela está coberta por uma capa preta, com capuz e tudo. A única coisa que falta é a foice.

– Estou – murmuro. – Leve-me. Leve-me no lugar dela.

A morte balança a cabeça. – Não é assim que funciona. A vida dela acabou. Mas a sua não precisa acabar. Tem certeza?

Uma fúria fervilhante irrompe das profundezas de mim.

– Mais certeza do que minha mãe quando me abandonou para uma vida de vazio e buscas sem sentido.

Suspirando, a Morte puxa seu capuz para trás, revelando seu rosto.

Demoro um momento para entender, minha mente lutando para compreender um conceito tão fora do ordinário. Bem, minha vida não foi nada além de extra. Desde o nascimento. Nascido desta ... mulher? Entidade?

Ela vê nos meus olhos, com a cor e o formato exatos dos dela, quando eu entendo.

– Eu queria dar a você a chance de uma vida plena antes de reivindicar você para mim. Eu não te abandonei. Eu sempre estive lá. Cada vez que você caiu, eu estava lá.

As palavras estão além de mim agora, pois tenho minhas perguntas respondidas. Todos elas.

– Celine é uma alma linda. Eu posso ver porque você quer ficar com ela.

Minhas preocupações urgentes me fazem falar. – É possível? – Olho da minha querida Celine na cama, deitada imóvel, para minha mãe biológica, o Anjo da Morte. Posso ter uma chance na vida após a morte?

– Você não vai para o paraíso, nenhum de vocês, ainda não – minha mãe sorri e, de repente, ela se parece mais com uma pessoa assim, mais real. – Mas eu posso mexer alguns pauzinhos e garantir que vocês se encontrem na próxima vida. Você terá que descobrir sozinho a partir daí.

– Ok, posso fazer isso.

– Tem certeza, Edgar? – Ela pergunta mais uma vez antes de se aproximar e dar um beijo na minha bochecha.



– Ei, joga de volta.

Eu me viro e vejo a garota mais linda que já vi.

– Garoto, a bola – ela grita.

Aos meus pés, há uma bola vermelha, que pego e arremesso de volta para ela. Em vez de ir para a mão da garota, ela vai direto para a janela do vizinho e ouvimos algo lá dentro se quebrar.

As sobrancelhas da garota alcançam a linha do cabelo. – Corre! – Ela grita e eu a sigo rua abaixo.

Quando estamos fora de vista, ela suspira. – Isso foi uma loucura. A propósito, sou Celine.

– Edgar – estendo a mão como já vi os adultos fazerem.

– Prazer em conhecê-lo, Edgar.

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