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Foto do escritorJulia Roscoe

Peixes e Vodka


“All the single ladies! All the single ladies!

– Mas que mer...

“Now put your hands up. Oh oh oh!”

Resmungando, viro-me de lado e tateio em busca do celular. Encontro o aparelho e apalpo mais um pouco até acertar o botão que desliga o despertador, já tendo apertado a opção da soneca vezes demais.

Com um bocejo, sento-me na cama e levo um minuto para me acostumar com a ideia de mais um dia. Meu coração também precisa de alguns instantes para voltar ao normal. Por que deixei minha sobrinha colocar Beyoncé como meu toque para despertar?

Na tela brilhante demais do iPhone, vejo uma lista de notificações que decido ignorar. Mentalmente, faço uma nota para deletar os aplicativos de atividades físicas.

“Que tal começar o dia com o pé direito? Uma caminhada de 20 minutos te ajuda a queimar até 200 calorias!”

É mesmo? Arremesso de peso me ajuda a queimar muito mais do que isso.

“Encontre sua paz interior com esse simples exercício de respiração”.

Pelo visto, também tenho que deletar os apps de meditação. A quantidade de oxigênio nos meus pulmões não vai mudar o que aconteceu, mas aposto que uma garrafa de vodka pode ser útil.

No caminho para cozinha, que fica a menos de cinco passos do meu quarto, meu celular vibra ao receber uma ligação. Sem olhar quem é, desligo o aparelho.

Se for o pessoal do trabalho, é melhor não atender, afinal, pessoas doentes ficam de cama, sem energia até mesmo para atender o telefone. E eu estou doente, quero dizer, tenho certeza de que já vi em episódio de Grey’s Anatomy ou de House M.D. alguma coisa sobre síndrome do coração partido.

Mas, se for, bem, ele, é melhor mesmo que eu não atenda, ou corro o risco de ir parar na cadeia por homicídio passional.

Largo o celular na bancada da cozinha e me dirijo ao refrigerador, ficando nas pontas dos pés para alcançar a garrafa de vodka coberta por uma sólida camada de gelo que está aí há uns cinco anos, desde que ele falou que álcool era para pessoas desmotivadas e fracas que não têm controle nenhum sobre si mesmas.

Rá! Toda aquela atividade física e todos os mantras não foram suficientes para que ele controlasse o que tem dentro das calças, não é mesmo?

Destampo a garrafa e tomo um bom gole, sem me preocupar com frescuras como copos ou horários socialmente aceitáveis para beber. Como fiquei meia década sem beber isso daqui?

Duas palavras: lavagem cerebral.

Ou melhor: pinto grande.

Suspiro. O sexo era mesmo de outro mundo e, pensando agora, admito que me deixei levar por uma boa transa. Na realidade, por milhares de transas de tirar o fôlego.

Em minha defesa, Fletcher era um partido e tanto, ao menos a princípio. Nos dias de hoje (com o risco de soar como minha mãe), não é fácil encontrar um homem heterossexual, educado, com emprego estável e intuito de constituir família.

E Fletcher clamava ser esse homem, o único da espécie.

Não achei estranho quando ele sugeriu que arranjássemos um animal de estimação depois que tivemos nossa primeira briga.

– Temos que dar um passo a mais no nosso relacionamento, princesa.

Eu concordei, é isso que adultos fazem: dialogam e seguem em frente. Claro que eu estava esperando um cãozinho ou talvez um porquinho da índia, e não um aquário com três peixinhos dourados.

– Essa se chama Caliie e esse grandão aqui é o Fletcher – ele explicou no dia seguinte, o aquário retangular em mãos. O terceiro peixe era o menor de todos e só poderia significar uma coisa. Fiquei emocionada e joguei meus braços ao redor do meu namorado, não mais decepcionada por não ter ganho um cachorrinho.

Acontece que o menor dos peixinhos já tinha nome. E profissão. Francesca Vagabunda, secretária executiva, muito prazer.

Sou um clichê ambulante. Uma maldita personagem em um drama dos anos 80.

A vodka desce queimando. Bom. Tomo mais um gole. O cúmulo da elegância.

Fletcher tinha muitas regras. Ou melhor, diretrizes do que ele considerava adequado, digno da mulher que ficaria ao seu lado, e daquilo que era relegado às pessoas inferiores, isso é, todas que não pensavam como ele.

– Só quero o que é melhor para você, princesa – ele me disse certa vez ao determinar por nós dois que não mais beberíamos álcool. Isso foi logo depois de montarmos uma rotina de exercícios físicos e consultar uma nutricionista. – Ah, e nada de banho de preguiçoso na banheira. Temos que estar em forma para o dia da minha apresentação.

Quando Fletcher dizia “nós”, ele estava se referindo a mim. Pois eu era a única que tinha ganho uns quilos extras desde que mudei de emprego e descontei o estresse nas rosquinhas da padaria ao lado do trabalho novo.

Um barulho estridente me faz pular no meio da minha cozinha. Checo o celular novamente só para me lembrar da existência do interfone.

Duas. Três. Quem quer que seja, não vai desistir antes de acordar o prédio inteiro com sua persistência.

– Quem é?

– Sou eu. Callie, me deixa entrar.

Sua voz me mantém congelada no lugar. Como ele tem coragem de aparecer aqui de novo?

– Olha, me desculpa. Você sabe que...

Até pelo interfone posso escutar o suspiro que ele dá. Nunca o ouvi tão desolado assim, sem chão, implorando. Meu dedo paira sobre o botão sem o meu comando.

– Só me deixar entrar, princesa.

Meu indicador paralisa e trata de voltar para seu devido lugar, ao lado dos outros dedos, formando um punho.

– Fletcher, é melhor você não aparecer mais aqui, ou irei chamar a polícia. E também não quero escutar nada sobre você agindo como um babaca com outra garota, está me ouvindo? Ou seu amiguinho vai virar comida de peixe.

Não dou tempo para ele responder. Saio da cozinha, com a garrafa de vodka ainda na mão, e ligo a torneira da banheira.

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