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Foto do escritorJulia Roscoe

Uma vizinhança assombrada


O relógio bate às doze horas. É hora de eu me levantar.

O ar da noite está frio, meu cabelo sopra atrás de mim e folhas secas dançam em volta dos meus pés descalços. Ao inspirar, sinto meu peito se expandir, mas nada mais – não há cheiro, nem sensação de satisfação, nem emoções. Estou acostumada com isso, não é tão diferente no subsolo. Exceto pelo vento.

Ele me leva através do gramado, para a estrada e para os becos escuros do centro da cidade. As ruas estão quase tão mortas quanto eu, as pessoas estão trancadas há muito tempo dentro de suas casas. Eles são todos tão... tradicionais. Levando a vida da pequena cidade para o túmulo.

Há muito tempo, eu era como eles. Bem-educada, reservada, uma boa filha. Eu olho para o meu vestido branco, agora manchado de terra. Foi um presente. Para qual ocasião, já não me lembro. Há rasgos e fiapos por todo o tecido macio. Costumava ser bonito. Agora está arruinado, como eu.

O vento continua a soprar e as nuvens se afastam, deixando a lua iluminar meu caminho. Já devia saber de cor, pois é o mesmo que ando todos os anos, na mesma noite.

Quando chego a um beco escuro em particular, um gato pula de trás de uma lata de lixo ao lado da saída de um bar. Música alta toca no interior, apesar da hora. Este é o único lugar na cidade onde as pessoas podem ser livres, onde a humanidade é deixada de lado e os homens se transformam em bestas. Afinal, quem aguenta a pressão de ser bom o tempo todo? Definitivamente não eu. Infelizmente, todos acabamos neste bar, de uma forma ou de outra.

Enquanto estou perdida em minhas memórias, dois homens bêbados saem, rindo e brincando.

– Olá – diz o primeiro a me notar, seus olhos cansados ​​da bebida tentam focar no meu corpo coberto com o que sobrou do vestido branco.

O outro bêbado, mais baixo e mais magro que o primeiro, agora me vê. Embora seu corpo não pareça tão forte quanto o do outro, é ele que mais me assusta. Ou me assustaria se houvesse alguma parte em mim para ficar com medo.

Seus olhos se estreitam e um sorriso malicioso encontra seu caminho em seu rosto pontiagudo.

– Ei, querida, você não quer se aproximar? Nós não mordemos! – O homem alto ri de sua própria piada.

Meus olhos estão focados no mais baixo, ele é aquele que parece não concordar com seu amigo. Ele morde.

É a minha vez de sorrir.

– Sim, venha para o papai, minha querida. – O bêbado falante confunde meu sorriso com encorajamento. Ele estende os braços gordos, como se estivesse pronto para me receber com o mais caloroso dos abraços.

Meu sangue ferve. Isto é, algo dentro de mim queima de raiva. Ah, então eu posso sentir alguma coisa.

Chego perto desses animais, tão perto que posso sentir seu calor.

– Eu não sou sua querida. Compreende? Eu não sou sua! – Cuspo as palavras, então eu acaricio o rosto inchado do homem com meu dedo.

– Bem, você não é tão ruim. Você só está agindo assim para impressioná-lo, não está? – Olho do homem alto para o outro, depois de volta para o primeiro. – É exatamente por isso que Carina deixou você. Você é tão fraco. Sempre ficando atrás dos outros em vez de intervir por si mesmo.

– Como... como você sabe? – ele murmura.

– Ah, Sean. Eu sei tudo sobre você. – Minha voz é calma, quase serena.

Então eu agarro seu queixo. Minhas palavras são graves e apressadas: – Você vai me prometer nunca mais machucar uma mulher, nunca mais falar com a gente assim.

– Sim. Sim, eu prometo.

Sean tropeça para longe quando eu o deixo ir, tropeçando na lata de lixo.

Eu me viro para encarar o segundo bêbado. Este vai ser mais difícil de convencer.

Ele está olhando para seu amigo caído, desgosto em seu rosto.

– Você é fraco, Sean. Você vai deixar uma mulher lhe dizer o que fazer?

Sean não está ouvindo, ele está genuinamente assustado por minha causa, mais preocupado sobre como eu sabia tanto sobre ele do que o que seu amigo pode fazer com ele.

– Sean não é mais da sua conta, Robert. – Dou um passo em direção a ele. – Você deveria estar preocupado com o que eu vou fazer com você. Afinal, você tem sido um mau garoto, não é?

Ele sorri. – Eu não tenho medo de você, garotinha. Na verdade, eu como garotas como você no jantar.

– Bem, então isso deve ser um banquete.

Robert pega uma faca no bolso ao mesmo tempo que eu alcanço seu pescoço.

Ele é rápido, conseguindo colocar a lâmina na minha garganta antes que eu possa espremer sua respiração.

Eu finjo estar com medo, dando um passo para trás e deixando-o me empurrar para a parede de tijolos do bar. Foi um longo ano e eu quero brincar.

– Não é tão durona agora, não é? – Sua respiração está quente na minha pele fria. Felizmente não consigo sentir o cheiro, cerveja e licor, tenho certeza.

– Você é como todas as outras: assustada e fraca quando eu quebro você – ele continua seu monólogo, tão certo de que já ganhou.

Então eu decido tirar aquele sorriso de seu rosto pontiagudo.

Sorrindo eu mesma, ando direto contra a lâmina. Isso faz Robert duvidar de si mesmo por um momento. Ele pressiona a faca, mas ela não faz nada com a minha carne já morta.

Sua carne, por outro lado, parece manteiga quando eu pego sua própria faca e esfaqueio seu peito com ela.

Eu me viro para Sean, que ainda está no chão do beco. – Não deixe de cumprir sua promessa, Sean.

Sem esperar por sua resposta, eu me afasto. Ainda faltam algumas horas para o nascer do sol e quero aproveitar.

Na parte residencial da cidade, há abóboras e esqueletos de plástico nos jardins da frente das casas. Eles me fazem pensar na última vez que esculpi uma abóbora para o Dia das Bruxas, foi na noite anterior à minha ida àquele mesmo beco, na noite anterior à minha morte.

Enquanto recordo aquela noite, continuo andando pelo bairro. Há apenas uma janela onde a luz ainda está acesa. Há um menino sentado no banco da janela, ele está lendo uma história em quadrinhos. Eu me aproximo, curiosa para saber por que alguém está acordado a essa hora.

“O Caso da Vizinhança Assombrada”, é o título da HQ. Na capa, há o desenho de uma jovem com um vestido branco rasgado.

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